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Quinolonas: Banimento e Restrição do Uso pela “European Medicines Agency” (EMA)

by Antibiótico e Antibióticos

Dra. Ana Cristina Gales 1,2,3 & Dra. Luciene Andrade da Rocha Minarini 4

1. Professor Adjunto, Disciplina de Infectologia, Departamento de Medicina, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo;

2. Professora Visitante, Curso de Medicina, Universidade São Francisco, Câmpus Braganca Paulista, São Paulo;

3. Coordenadora do Comitê de Resistência Bacteriana, Sociedade Brasileira de Infectologia;

4. Professor Adjunto, Laboratório Multidisciplinar em Saúde e Meio Ambiente, Departamento de Ciências Farmacêuticas, Diadema; Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.

As quinolonas, por possuírem atividade contra bactérias gram-positivas e gram-negativas, constituem uma importante classe de antimicrobianos utilizada para o tratamento de vários tipos de infecções, tais como: gastrointestinais, respiratórias, infecções sexualmente transmissíveis e urinárias. Esses antimicrobianos atuam inibindo a atividade de enzimas denominadas topoisomerases durante a síntese do DNA bacteriano. Dentre as topoisomerases de classe II, a topoisomerase II, também denominada DNA girase, e IV constituem os principais alvos de ação das quinolonas.

As topoisomerases alteram o estado topológico da molécula de DNA bacteriano ao quebrarem a fita de DNA e restaurarem a área de quebra; portanto, atuam tanto no desenovelamento (separação das fitas duplas de DNA), quanto no posterior enovelamento das fitas de DNA, bem como na separação das moléculas de DNA entre as células-mães e as células-filhas. Resumidamente, quando as quinolonas se ligam às topoisomerases, elas impedem a atuação dessas enzimas na restauração da área da quebra da fita de DNA e com isso impedem a síntese de uma nova molécula de DNA bacteriano, levando eventualmente à morte celular.

Os seres humanos também possuem em seus genomas os genes que codificam as topoisomerases. Portanto, durante o desenvolvimento de agentes pertencentes à classe das quinolonas, aqueles compostos que apresentam alta afinidade pelas topoisomerases bacterianas e baixa afinidade pelas topoisomerases humanas são desenvolvidos como antimicrobianos, enquanto que o oposto leva ao desenvolvimento de agentes quimioterápicos, como o etoposide. Desta maneira, espera-se que as quinolonas possuam toxicidade superior àquela apresentada por antimicrobianos que não possuem alvo de ação presente em células humanas, como os betalactâmicos, que atuam nas proteínas ligadoras de penicilinas (PBPs) presentes somente em células bacterianas.

Além disso, estudos mais recentes sugerem que as fluoroquinolonas são prejudiciais às mitocôndrias, que são estruturalmente semelhantes às bactérias. Acredita-se que as mitocôndrias tenham sido, há bilhões de anos, bactérias que atuavam simbioticamente com células humanas e que acabaram sendo incorporadas a essas. O dano mitocondrial pode afetar todas as células do corpo, explicando porque uma ampla gama de reações adversas pode aparecer e agravar durante o tratamento com quinolonas. Também tem sido proposto que as fluoroquinolonas, como o ciprofloxacino, quelariam o ferro, que levaria à inibição das enzimas dioxigenases dependentes de ferro e, consequentemente, à diminuição da maturação das células da cartilagem, o que poderia justificar a tendinopatia e a nefrotoxicidade desses fármacos.

Muitas quinolonas foram desenvolvidas desde a descoberta do ácido nalidíxico, que foi a primeira quinolona a ser desenvolvida, em 1962. Embora em estudos de fase 3 não tenham sido observadas reações adversas graves, várias dessas quinolonas foram retiradas do mercado após a comercialização porque tais efeitos foram observados após a utilização desses compostos em um número maior de indivíduos, como grepafloxacino (cardiotoxicidade), gatifloxacino (distúrbios do metabolismo da glicose), temafloxacino (insuficiência renal, hepatotoxicidade, anemia hemolítica, coagulopatia e hipoglicemia) e trovafloxacino (hepatite aguda).

Vários grupos de pacientes afirmaram que ficaram doentes após o tratamento de curta duração com fluoroquinolonas. Muitos deles descreveram doenças debilitantes e progressivas, englobando sintomas que variam desde distúrbios psiquiátricos e sensoriais até problemas com músculos, tendões e nervos, que permaneceram mesmo após a interrupção do tratamento. Após campanhas persistentes desses grupos de pacientes, em 2008, a “Food and Drug Administration” (FDA) dos Estados Unidos anunciou o primeiro “alerta de caixa” sobre os efeitos adversos das fluoroquinolonas – risco de ruptura de tendão; e, em 2013, acrescentou o risco de danos irreversíveis dos nervos. Em 2016, a agência reconheceu a existência de uma síndrome potencialmente permanente chamada de deficiência associada à fluoroquinolona (FQAD), em que pessoas saudáveis tratadas com fluoroquinolonas em decorrência de infecções leves desenvolveram, posteriormente, condições incapacitantes e potencialmente irreversíveis.

A FDA também observou que havia relatos mais frequentes de eventos adversos graves com fluoroquinolonas do que outras classes de antibióticos e recomendou que estas passassem a ser indicadas somente para o tratamento de infecções graves. Em consequência disso, outras agências reguladoras também reavaliaram o uso das fluoroquinolonas. A agência canadense, Health Canadá, alertou os médicos sobre casos raros de efeitos colaterais persistentes ou incapacitantes em janeiro de 2017, e a “European Medicines Agency” (EMA) reviu a sua posição após a audiência pública realizada em junho 2018.

A revisão da EMA desta classe de antimicrobianos teve início em 09 de fevereiro de 2017, a pedido do “German Medicines Authority” (BfArM), o órgão regulador médico na Alemanha, após relatos de efeitos adversos permanentes em pacientes cadastrados em seu banco de dados nacional e encontrados em literatura publicada. A revisão foi realizada, inicialmente, pelo “Pharmacovigilance Risk Assessement Committee” (PRAC), que é o comitê responsável pela avaliação das questões de segurança dos medicamentos para uso humano na União Europeia. A EMA analisou as reações adversas graves, incapacitantes e potencialmente permanentes com quinolonas administradas por via oral, intravenosa e inalatória, tais como: cinoxacino, ciprofloxacino, flumequino, levofloxacino, lomefloxacino, moxifloxacino, ácido nalidíxico, norfloxacino, ofloxacino, pefloxacino, ácido pipemídico, prulifloxacino e rufloxacino.

A revisão levou em consideração o relato de pacientes, a opinião dos profissionais de saúde e evidência científica disponível apresentados em audiência pública da EMA sobre as quinolonas, em 13 de junho de 2018. A síntese da audiência pública da EMA sobre as quinolonas foi transmitida ao vivo e encontra-se disponível online traduzida para o português (https://www.ema.europa.eu/documents/report/summary-ema-public-hearing-quinolone-fluoroquinolone-antibiotics_pt.pdf ).

As recomendações finais do PRAC foram adotadas em 04 de outubro de 2018 e enviadas ao “Committee for Medicinal Products for Human Use” (CHMP), comitê responsável pelas questões relativas aos medicamentos para uso humano. O CHMP endossou as recomendações do PRAC, em 15 de novembro de 2018, e concluiu que a autorização de comercialização de medicamentos contendo cinoxacina, flumequina, ácido nalidíxico e ácido pipemídico deveria ser suspensa. O CHMP confirmou ainda que a utilização das fluoroquinolonas deveria ser limitada e aconselhou a interrupção do tratamento com fluoroquinolonas ao primeiro sinal de alguma reação adversa envolvendo músculos, tendões ou articulações e/ou o sistema nervoso.

O parecer do CHMP foi enviado à Comissão Europeia, que emitirá uma decisão final juridicamente vinculativa aplicável em todos os países da União Europeia. As autoridades de cada país europeu aplicarão essa decisão para antimicrobianos da classe das quinolonas autorizados em seus países e também tomarão outras medidas apropriadas para promover o uso correto desses medicamentos.

Restrições ao Uso das fluoroquinolonas

As fluoroquinolonas não devem ser prescritas obviamente para o tratamento de infecções não bacterianas ou aquelas que não são graves e que podem melhorar sem tratamento, como amigdalite. Esses antimicrobianos também não devem ser utilizados na prevenção da diarreia do viajante ou infecções urinárias recorrentes, ou ainda no tratamento de infecções bacterianas leves ou moderadas, a menos que outros antimicrobianos frequentemente recomendados para o tratamento dessas infecções não possam ser utilizados (https://www.ema.europa.eu/documents/referral/quinolone-fluoroquinolone-article-31-referral-disabling-potentially-permanent-side-effects-lead_en.pdf ). Os graves riscos associados ao uso de fluoroquinolonas para esses tipos de infecções não complicadas geralmente superam os benefícios em pacientes que possuem outras opções de tratamento.

Reações Adversas atribuídas ao uso das fluoroquinolonas

A EMA reconhece que as fluoroquinolonas estão associadas à ocorrência de eventos adversos tardios (até meses ou anos após o início da antibioticoterapia), graves, incapacitantes e potencialmente irreversíveis, que afetam vários sistemas, órgãos e sentidos. As reações adversas mais graves incluem tendinite, ruptura de tendão, artralgia, dor nas extremidades, distúrbio da marcha, neuropatias associadas com parestesia, depressão, fadiga, problemas de memória, distúrbios do sono e deficiência auditiva, visual, incluindo do paladar e olfato.

Os danos nos tendões, especialmente no tendão de Aquiles, mas também em outros tendões, podem ocorrer dentro de 48 horas após o início do tratamento com fluoroquinolona, mas o dano pode ser tardio e diagnosticado vários meses após a interrupção do tratamento. Os pacientes idosos, com insuficiência renal, transplantados de órgãos sólidos ou aqueles tratados com corticosteroide apresentam maior risco de lesão nos tendões. Dessa maneira, o tratamento concomitante com fluoroquinolona e corticosteroide deve ser evitado, porque aumenta o risco de reações adversas. O tratamento com fluoroquinolona deve ser descontinuado ao primeiro sinal de dor ou inflamação do tendão, ou com o surgimento de sintomas de neuropatia como dor, queimação, parestesia, ou fraqueza para prevenir o desenvolvimento de condições potencialmente irreversíveis. A EMA ainda ressalta que as quinolonas devem ser evitadas em pacientes que já tiveram reações adversas graves a esses antimicrobianos.

No documento da EMA, a ocorrência de reações adversas graves também associadas ao uso de fluoroquinolonas , como arritmias (aumento do intervalo QT), dissecção de aneurisma de aorta e/ou fototoxicidade não foram mencionados, mas devem sempre ser lembradas ao se prescrever essa classe de medicamentos.

No Brasil

Até o momento, a ANVISA não emitiu nenhum comunicado quanto à restrição ao uso das quinolonas. A Diretoria, bem como o Comitê de Resistência Bacteriana da Sociedade Brasileira de Infectologia se posicionam favoravelmente às recomendações das agências internacionais.

O ácido nalidíxico foi a primeira quinolona a ser descoberta, em 1962, por Lesher e colaboradores enquanto esses buscavam por uma substância com atividade antimalárica. Tanto o ácido nalidíxico quanto o ácido pipemídico e a cinoxacina são quinolonas com baixa potência in vitro, baixa concentração sérica e com alto potencial para seleção de mutantes quando comparadas às fluoroquinolonas. Estudos internacionais mencionam o uso de quinolonas com baixa potência como um dos fatores responsáveis pelas altas taxas de resistência observadas em E. coli em determinadas regiões geográficas. Em países desenvolvidos, o uso clínico desses antimicrobianos tem sido substituído pelo uso de quinolonas mais novas, como as fluoroquinolonas, que apresentam maior potência in vitro e perfil farmacocinético mais favorável. Na Europa, a flumequina é uma fluoroquinolona disponível em comprimidos ou em solução oral para uso veterinário (http://www.medvet.simposium.pt/RCM/Index/1552). Dessa maneira, acreditamos que o banimento dessas quinolonas não apresentarão um grande impacto na prática clínica da medicina humana e/ou veterinária.

REFERÊNCIAS

1. Hooper DC, Strahilevitz J. Quinolones. In: Mandell, Douglas, and Bennett’s principles and practice of infectious diseases / [edited by] John E. Bennett, Raphael Dolin, Martin J. Blaser. – Eighth edition. Vol I. Chapter 34; p. 419-440.

2. Golomb BA, Koslik HJ, Redd AJ. Fluoroquinolone-induced serious, persistent, multisymptom adverse effects. BMJ Case Rep. 2015 Oct 5;2015.

3. Kalghatgi S, Spina CS, Costello JC, Liesa M, Morones-Ramirez JR, Slomovic S, Molina A, Shirihai OS, Collins JJ. Bactericidal antibiotics induce mitochondrial dysfunction and oxidative damage in Mammalian cells. Sci Transl Med. 2013 Jul 3;5(192):192ra85.

4. Badal S, Fer YF, Maher III, LJ. Nonantibiotic effects of fluoroquinolones in Mammalian cells. J Biol Chem 2015 Sep 4; 290(36): 22287–22297. 

5. Marchant J. When antibiotics turn toxic. Nature. 2018 Mar 22;555(7697):431-433.

6. European Medicines Agency. Quinolone- and fluoroquinolone-containing medicinal products. Disponível em:
https://www.ema.europa.eu/en/medicines/human/referrals/quinolone-fluoroquinolone-containing-medicinal-products

7. Acar JF, Goldstein FW.Trends in bacterial resistance to fluoroquinolones. Clin Infect Dis. 1997 Jan;24 Suppl 1:S67-73.

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